sábado, 6 de julho de 2013

Quando meninos se tornam homens (meu ritual de passagem)


Existe um sorvete de palito que eu gosto chamado Mega. Quando eu era criança ele era meu sonho de consumo. Quando a propaganda do Mega Branco passava na TV eu sentia minha boca encher de água, mas nós não tínhamos dinheiro pra comprar. Eu pensava comigo que quando eu fosse “grande” eu compraria muitos Mega Branco só pra mim.

Morávamos em Belém, no Pará, minha mãe, minha irmã mais nova e eu, quando meu pai que já não dava as caras havia cinco anos, apareceu. Ele havia se separado de sua segunda mulher e convenceu mina mãe a mudar-se com ele para Ribeirão Preto, em São Paulo. Fomos, felizes.

Em um mês ou dois a coisa toda mudou. Meu pai voltou com a mulher dele e, durante um curto período de tempo (mas que pareceu uma eternidade) moramos todos juntos na mesma casa. Meu pai, minha mãe, minha irmã e eu, e mais os outros três filhos que meu pai teve com sua segunda esposa. Foi bem estranho.

Então meu pai resolveu ir para Brasília trabalhar e eu fui junto ajudar no trabalho, deixando minha mãe e minha irmã em Ribeirão Preto. Fiquei por lá uns três meses, eu acho. Nesse meio tempo, meu pai parou de mandar dinheiro para a minha mãe, o que fez com que ela e minha irmã passassem sérias dificuldades, e eu intermediava a conversa entre ela e meu pai. As coisas estavam bem difíceis e meu pai não conseguia mais sustentar as duas famílias. O stress aumentou, e ele começou a me tratar com uma agressividade que eu não havia visto ainda. A mesma agressividade com que a vida nos trata, mas eu não sabia. Eu tinha 13 anos.

Certa tarde, trabalhando na Feira do Livro, meu pai me pediu alguma coisa e eu não consegui encontrar. Ele começou a zombar de mim por meu comportamento de “garoto do mato” e depois do terceiro adjetivo pejorativo eu não aguentei e sugeri que ele fosse “tomar no cu”, e saí dali.
Cruzei a cidade toda á pé e quando cheguei ao apartamento onde morávamos, com a intenção de pegar minhas coisas e conseguir uma carona de volta pra Ribeirão, ele havia passado por lá antes de mim e dito à sua mulher que não abrisse a porta pra mim, com medo de que eu fosse fazer alguma coisa à sua mulher ou aos seus filhos. Não era o caso.

Meu pai esperava que eu me sentasse na escada e esperasse, mas eu não esperei. Saí à rua para ver o que faria, mas já era noite.  Foi quando eu tive a brilhante (risos) ideia de pedir algum dinheiro para os taxistas do outro lado da avenida. Naquela época o pãozinho custava 0,10 e se eu conseguisse 1 real, poderia sobreviver todo o fim de semana com 10 pães. Era uma sexta feira.

Pedi para os três primeiros taxistas e desisti. Eles achavam que eu queria comprar drogas. Eu contei a minha história verdadeira, mas eles achavam que eu era só um mentiroso criativo. Quando já havia desistido, um dos taxistas que já havia me visto por ali, perguntou qual era a história e eu contei. Ele disse que não me daria dinheiro, mas me levou em uma barraquinha onde vendia de tudo e disse que eu poderia pegar o que eu quisesse, por quanto tempo precisasse. Fiquei feliz e comi, mas moderadamente, para não pesar ao bom homem.

Fiquei do outro lado da avenida e esperei meu pai chegar, as onze na noite. Ele não me viu. 

Ele tinha um Santana Quantum marrom, com rodas em formato de estrela. Eu achava lindo. Havia um probleminha na trava do porta-malas que ainda não havia sido resolvido. Eu sabia como abrir, e também sabia que haveria uma coberta e travesseiros no porta-malas, pois viajávamos muito pela região e sempre dormíamos no carro. Esperei dar meia noite e fui dormir no carro. Na época havia uma rádio-novela que passava naquele horário na emissora da LBV, era Nosso Lar do Chico Xavier. Eu gostava de ouvir as histórias, e fiquei ouvindo até pegar no sono.

Saí do carro antes que meu pai acordasse às seis da manhã. Tomei meu café na barraquinha onde meu amigo taxista me autorizou a comer e fui tentar resolver minha situação. Para encurtar a história, consegui falar com a minha mãe por telefone e descobri que eu tinha um parente que era Ministro da Justiça à época. Quando ela conseguiu encontrá-lo para me ajudar já era Domingo. Peguei um taxi ali mesmo, no ponto de taxi do meu amigo, e fui pra a casa desse parente que, ao contrário do que eu imaginava, vivia em um apartamento modesto. Mas ainda assim era um lugar bem legal. Comi pão de queijo com eles no café da manhã e ganhei 50 reais para voltar pra casa.

Naquela tarde peguei um ônibus de Brasília pra Ribeirão Preto e tive bastante tempo pra pensar na vida. De madrugada, o ônibus parou em um posto de gasolina e havia um tempo pra que os passageiros comprassem o que quisessem comer. Eu andei pela loja e vi um freezer de sorvete com a propaganda do sorvete Mega. Eu ainda tinha algum dinheiro daqueles 50 reais que ganhei. Não comprei mais nada, apenas o sorvete Mega Branco.

Comi aquele sorvete no ônibus e chorei. Chorei porque sabia o que significava aquele Mega Branco. Significava que eu não era (e nem podia ser) mais um menino. A partir daquele dia eu teria que fazer minhas próprias escolhas e sofrer as consequências delas. Eu não tinha mais meu pai pra comprar o que eu pedisse, e minha mãe estava em uma cidade estranha, sem emprego e agora também sem casa. A partir daquele dia e daquele Mega Branco, eu teria que cuidar da minha família, e se eu quisesse alguma coisa teria de conseguir por mim mesmo.

Fomos acolhidos por um bicheiro rico da cidade que nos cedeu uma casinha no fundo de uma chácara. Durantes seis meses ele nos guardou ali. Nesse período consegui o meu primeiro emprego e, depois de seis meses fomos morar em um lugar que podíamos pagar, na periferia de Ribeirão.
Desde então, toda vez que eu vejo um sorvete Mega, me lembro daqueles três dias em Brasília, e daquela noite no ônibus. Também me lembro de que existem pessoas boas, apesar de serem mais raras hoje do que antes. Mas principalmente, me lembro do dia em que deixei de ser um menino para me tornar um homem.


Giordano Nârada